quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Vida Ribeirinha: A produção por trás das Câmeras



Em fevereiro de 2009, há exatamente um ano, recebi um telefonema da redação da Tv Globo em São Paulo. Era Karina Dorigo, produtora do Projeto Amazônia: - Daniela? É Karina. Tudo bom? Gostaríamos que você fizesse uma reportagem para o Projeto. Você pode?

E logo ela começou a me “vender” a pauta, como se fala no jargão de jornalista. Foi amor à primeira vista. Fiquei encantada com a ideia dos produtores do Projeto Amazônia. Em catorze anos de profissão já havia feito várias reportagens sobre a floresta, a fauna amazônica, pesquisas científicas e outros temas sempre recorrentes. Mas o homem amazônico, como personagem principal, era oportunidade única e rara.


Topei na hora, principalmente quando soube qual era a proposta: acompanhar durante um ano a vida dos ribeirinhos. O primeiro desafio foi escolher o local onde a reportagem seria feita. Juntos, avaliamos que a Região do Médio Solimões seria perfeita porque é uma área de várzea e, portanto, seus habitantes – os vargeiros – sentem mais os efeitos da subida e descida do rio.

O segundo desafio: logística. Otávio Tostes, um experiente jornalista carioca que trabalhou na Rede Amazônica sempre dizia que qualquer viagem pela Região Amazônica é uma expedição. E é quase isso mesmo. Precisávamos de um local que fosse distante dos grandes centros, mas que pudéssemos contar com alguma infra-estrutura que viabilizasse a produção.

Surgiu Mamirauá, a primeira reserva de desenvolvimento sustentável do Brasil, um projeto sério, premiado, reconhecido mundialmente. Começou então o trabalho de pré-produção. O produtor Wagner Sabino e o coordenador de logística do Instituto Mamirauá César Modesto percorreram a Reserva por uma semana, avaliando as melhores locações, conversando com os moradores, procurando personagens – a maneira que chamamos as pessoas que exemplificam aquilo que queremos mostrar.


A primeira das quatro viagens foi no mês de abril. Nesta época raramente pisávamos em terra. Impressionante! Durante nove dias estivemos em cima d’água! Dormíamos em um barco pequeno, bem pequeno. Pela manhã pulávamos na voadeira que nos levava às comunidades. Entrávamos nas casas com canoa e tudo quando a porta ainda podia ser aberta ou... pela janela, quando havia jirau – o segundo andar de assoalho construído pelo ribeirinho para continuar vivendo na casa durante a cheia.

Voltamos duas vezes mais: em julho quando ficamos 11 dias morando nos flutuantes usados para fiscalização e pesquisas científicas na Reserva; e depois em agosto, quando as águas começavam a baixar e nascia Ibson, filho da Mayara e do Antônio. A última viagem foi em novembro, auge da seca. Nesta etapa voltamos aos lugares visitados nas viagens anteriores e conversamos com as mesmas pessoas para saber o que aquela estação, tão radicalmente oposta, mudava na vida deles.

E mesmo na seca, pegamos temporal. Durante a gravação da passagem do Apuizeiro, o céu foi fechando e as nuvens negras se aproximando. Tivemos que sair quase correndo de volta para o barco: o meu cabelo quase em pé sinalizava que ali naquele ponto da praia existia a possibilidade de cair um raio! Salvos pelos conhecimentos de física do César...

Na seca andávamos muito. Para chegar à comunidade de Maguari, por exemplo, eram exatos 15 minutos, cronometrados, do rio até a primeira casa. Parece pouco? Então imagina o que é caminhar na areia fofa, úmida, às vezes lama mesmo, sol escaldante e... carregando equipamento! Para nós o esforço durou apenas duas semanas. Para eles dura uma vida toda.

Passamos por cinco municípios – Tefé, Maraã, Alvarães, Uarini e Fonte Boa. Percorremos quase 200 quilômetros do Rio Solimões e seus afluentes. Para contar aquelas histórias, tivemos um apurado trabalho de produção, mas muitos personagens foram garimpados... por sorte. Nosso encontro com o Aluiziano dos porcos, por exemplo. Paramos no flutuante dele apenas para pedir uma informação e nos deparamos com aquela cena emblemática da retirada dos porcos! Sorte. Foi como agulha no palheiro...

Também foi o acaso que nos conduziu até Joyce e sua comovente história da perda do filho. Seguindo o regatão chegamos sem querer a Marlene, a simpática mãe de família que finaliza o programa com aquele “presente” de frase “Tem muita gente que acha que a gente vive num buraco. Mas esse buraco aqui tem muita coisa boa a nos oferecer”. Que mulher sábia! Curiosidade: ganhei aquele travesseiro de munguba que aparece na reportagem. Adorei!


Finalizado o trabalho de captação de imagens – magistralmente feitas por Sisley Monteiro em três das viagens e Hélio Gonçalves em uma delas – e captação dos sons – executada pelos operadores Epitácio Araújo , o Pita e Edvaldo Simão, o Ed – começou a finalização do material. É nesta etapa que as 56 horas gravadas começam a ganhar corpo e são resumidas em 35 minutos que é o tempo do Programa. A editora Cláudia Guimarães, no Rio de Janeiro, confidenciou que foi duro escolher o que ia ficar de fora. Opinião compartilhada pelo editor de imagens Francisco Carvalho, o Chiquinho. Dois grandes profissionais.


Televisão é isso, trabalho em equipe. Por trás de cada imagem que vai ao ar, existem talento e esforço coletivo – e muitas vezes anônimo. Que bom poder compartilhar com vocês os créditos dos colegas. Todo o meu agradecimento à eles.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Morte e Vida Ribeirinha



Nasci e cresci na Região Amazônica. Tempestades tropicais - os nossos “torós” - e o sol inclemente fazem parte da minha história de vida. Meu pai, parintinense, com o orgulho das coisas da terra, típico do homem do interior, fez com que eu crescesse amando comer peixe só no sal e limão. Ainda sinto aquele friozinho na barriga de quando pulava do barco bem no meio das escuras águas do Rio Negro.

Embora tenha nascido em Manaus, está bem viva na minha memória a “vida de cabocla” que levava nos fins de semana quando, nos balneários - nossos “banhos” - a família toda tinha contato direto com a natureza amazônica. Esperava ansiosamente o domingo...

Mesmo para mim, foi uma grande surpresa a realidade que vi e ouvi durante o ano de 2009, quando preparava a reportagem que foi ao ar nesta sexta-feira. No meio da floresta, a natureza desafia o homem a cada segundo. Visão, audição, olfato, todos os sentidos do ribeirinho estão sempre em alerta. Pelo cheiro dá para saber se vem chuva! Uma marca um pouco mais forte na terra molhada indica que um animal passou por ali! Séculos de convivência com a mata e os conhecimentos que vão passando de geração em geração transformaram o ribeirinho em um leitor de símbolos amazônicos.



Não há nada de bucólico nas cenas de canoas abarrotadas de gente, crianças por cima de sacolas, senhoras segurando sombrinhas coloridas. É duro, muito difícil. Aquelas pessoas estão cruzando durante horas, às vezes dias, furos, igarapés, rios inteiros para sair ou chegar em suas casas. É a única alternativa para ir ao médico ou comprar um saco de açúcar. Suor, esforço, determinação poderiam substituir a tão batida frase “Os rios são estradas na Amazônia”, que de tão frequente nos textos jornalísticos já virou até jargão, lugar comum, abolida pela a maioria dos editores, felizmente. Há muito mais a dizer...

Dizer, por exemplo, que falta quase tudo: mais escolas – e que as que estão lá realmente funcionem na prática - postos de saúde mais próximos às comunidades equipados, pelo menos, para os atendimentos básicos. Dizer que falta a presença do poder público e que as pessoas continuam tentando sobreviver mesmo naqueles anos que não são eleitorais. Dizer que lá, nos lugares mais distantes, o ribeirinho pode não ter voz para reclamar suas necessidades urgentes, mas ainda assim tem sabedoria de dar inveja.

Fui para a Reserva de Mamirauá para a produção da reportagem do Projeto Amazônia da Tv Globo achando que iria falar da relação de amor e ódio entre o ribeirinho e a água. Achava que era uma tentativa do rio de expulsar os intrusos, uma gente que está ali há pouco mais de quatrocentos anos. O ribeirinho, por sua vez, quer desafiar, mostrar que é possível sim dominar a natureza.Não achei o que procurava. A relação do ribeirinho com o rio é de amor e amor. O ribeirinho, por sua vez, quer desafiar, mostrar que é possível sim dominar a natureza.



Diante de uma das maiores cheias da história, que destruiu casas e arrasou plantações perguntei, insistentemente, a todos que encontrava: “- Você não fica com raiva do rio invadir a sua casa, levar tudo que você tem?” Ouvi, sempre, invariavelmente, a mesma resposta: “- Não, de jeito nenhum. É Deus quem quer assim”. Pode parecer conformismo. Não é. Com toda sua sabedoria, o ribeirinho entende que a mesma água que causa transtornos, fertiliza o solo onde é plantada a mandioca de onde sai a farinha deles de cada dia. Não se pode odiar o que torna a terra fértil, o que facilita os deslocamentos nos recôncavos mais distantes, o que permite a vida na floresta.

A maioria das pessoas que encontrei não sabia que iríamos chegar lá, naquela hora, naquele dia. Mesmo com a produção bem feita, dá para imaginar, a comunicação é praticamente impossível. Não dá para marcar entrevista. Não por escolha, chegávamos de surpresa nas casas. Nunca vi ninguém deitado em rede, dormindo. Na maioria das vezes, a pessoa que procurávamos estava mata adentro, trabalhando, roçando. Quem estava perto de casa, fazia pequenos reparos, pescava, limpava o peixe, beneficiava farinha. As mulheres cozinhavam, lavavam roupa.

De tudo que aprendi, o que mais me marcou foi descobrir a notável capacidade do ribeirinho de se reinventar a cada ciclo de cheia e seca, a determinação de sobreviver num lugar tão desafiador e a incrível característica de aceitar a realidade sem se conformar com ela, vivendo uma vida de eternos recomeços.




sábado, 16 de janeiro de 2010

Um herói brasileiro




Em 2008, estive em muitos dos lugares atingidos pelo furacão desta terça-feira. Lembro bem dos oficiais do Comando Militar da Amazônia me mostrarem, com orgulho, a reforma que fizeram em uma fábrica de vidros abandonada. A antiga fábrica agora era a sede do 9 Batalhão Brasileiro, o Brabat, que estampava na fachada a onça pintada como símbolo. Não se sabe ainda o tamanho da destruição neste prédio. Mas o Palácio do Governo, sem dúvida a construção mais imponente de Porto Príncipe, agora completamente arruinado, mostra bem a fúria do terremoto.


Mas, para mim, nada é tão chocante quando as fotografias do prédio da Minustah, a Missão das Nações Unidas no Haiti. Estive lá por duas ocasiões. O antigo hotel de luxo, falido e abandonado, passou por obras de adaptação para receber os funcionários da ONU que chegaram em 2004 para estabilizar o país dividido em conflitos políticos e sociais.

No alto de um morro, guardado pelos soldados capacetes azuis estava sediada a esperança do Haiti. O salão de entrada, não ostentava mais os sofás e quadros que recepcionavam os hóspedes. No lugar, simpáticas atendentes haitianas, conduziam os visitantes aos gabinetes. Lembro de ter passado pela antiga piscina do hotel, sem água, mas ainda com os azulejos decorados com desenhos de animais marinhos.

Fomos ao quarto andar, aguardamos alguns minutos quando uma porta se abriu. Um senhor de cabelos grisalhos nos deu um sorriso acolhedor. Era Luiz Carlos da Costa, representante adjunto do Secretário-Geral, o número dois da ONU no Haiti. O brasileiro Luiz Carlos, funcionário de carreira das Nações Unidas, vivia há muitos anos fora do Brasil. Ali descobri que além do braço militar, fundamental para a reconstrução política e social, existia uma missão paralela, a civil, que trabalhava junto a organismos estrangeiros para que o Haiti pudesse ser reerguido também economicamente.


Para Luis Carlos era importante trabalhar para dar confiança às comunidades para que elas pudessem se preocupar também com a criação de projetos para o crescimento econômico e social do país. O representante Adjunto acreditava que uma vez estabilizado, a missão no Haiti entrava em uma segunda e determinante fase: precisava de investimentos para a geração de empregos. Em Outubro de 2008, 80% da população estava desempregada, um número inacreditavelmente alto.

Depois da entrevista, já na porta de saída de seu gabinete, Luis Carlos perguntou se estava tudo certo para o helicóptero no dia seguinte que nos levaria para a cidade de Gonaives, arrasada por furacões naquele mês. Quando falamos que a carona havia sido negada pelos helicópteros da ONU, Luis Carlos se empenhou pessoalmente para a equipe brasileira de jornalistas pudesse mostrar a tragédia ao Norte do Haiti. Graças a ele, naquele dia, os brasileiros puderam acompanhar o trabalho das tropas chilenas, peruanas, argentinas e dos militares do Brasil no resgate e reconstrução de Gonaives.

Senti um imenso orgulho de ver um brasileiro ocupando um cargo tão importante na ONU. Senti uma imensa tristeza ao ouvir o nome de Luis Carlos da Costa entre os desaparecidos. Um brasileiro que lutava há 6 anos numa guerra que não era dele, mas com o empenho de quem queria alcançar a vitória – dignidade para um povo.

Olhos na Escuridão


Fome, miséria, casas em escombros. Crianças perambulam pelas ruas sem sapatos, sem comida. Adultos, aos milhares, sentados nas esquinas com um olhar distante, à espera de um futuro que nunca chega. Esta não é uma descrição atual. Era o Haiti que conheci em Outubro de 2008. Impossível imaginar um cenário pior que aquele, mais aterrador, mais caótico.

Á noite de terça-feira, 12 de Janeiro de 2010, tornou a realidade, inacreditavelmente, ainda mais aterrorizante. Quem já transitou pelas ruas de Porto Príncipe em um dia normal, sem faróis, sem leis de trânsito, com lixo e entulho nos cruzamentos, pode imaginar a dificuldade que as equipes de socorro estão enfrentando. Não há caminhões, tratadores ou qualquer máquina que possa ajudar na remoção de escombros.

Os equipamentos mais modernos que existem no Haiti são os da ONU que estão sob a responsabilidade da Companhia de Engenharia do Exército Brasileiro. Em 2008 eram pouco mais de 20 caminhões e tratores que reconstruíam estradas e pontes. O número é sem dúvida insuficiente para a tragédia. E ainda que fossem em maior número, como chegar no alto dos morros com a obstrução das vias por prédios que caíram ou estão prestes a ir ao chão?

Os hospitais já não tinham leitos e remédios suficientes. Agora não há hospitais. A comida ficava exposta pelo chão do mercado de Bel Air e era vendida a quem ainda podia pagar por ela. Entre hortaliças sem nenhum viço, eram oferecidas aos fregueses broas de terra. Sim, terra amassada com um punhado de farinha torrada ao sol saciava a fome extrema. Agora, onde conseguir qualquer tipo de comida?

80% da cidade vivia as escuras. Não havia energia elétrica para 8 em cada 10 moradores da capital. Durante a noite, a escuridão no bairro de Cite Soleil - que já foi o lugar mais perigoso do mundo - só era quebrada pelos faróis dos blindados da ONU que conduziam os soldados brasileiros nas patrulhas. Quando a luz de uma lanterna quebrava o breu, podíamos ver que ali, aos milhares, pessoas se amontoavam pelas esquinas para passar a noite que parecia nunca terminar. O que a televisão e a internet nos mostram é este caos muitas vezes multiplicado.

Há muito não há água em boas condições no Haiti. As florestas foram completamente dizimadas para a produção de carvão vegetal. Os rios foram açoriados, lama desce os morros e corre pelas margens na direção do oceano. As favelas da capital ficam junto ao mar. Num sobrevôo é fácil ver a mancha escura de esgoto que circula Porto Príncipe.

Por isso, água potável já era há dois anos, um item raro e disputado. Durante uma distribuição em um carro pipa organizada por militares brasileiros, uma senhora disse: - Esta aqui, minha filha, é água boa. Vou guardar. Para mim e para minha família de cinco pessoas vai dar para uma semana. Ela segurava um balde de pouco mais de cinco litros nas mãos...